Em 9 de agosto, é comemorado o Dia Internacional dos Povos Indígenas. A data foi criada pela Organização das Nações Unidas – ONU, no contexto da Resolução nº 48/163, de 21.12.1993, intitulada “Década Internacional dos Povos Indígenas do Mundo”, no âmbito da qual, além de proclamar a primeira Década Internacional dos Povos Indígenas compreendendo o período de 1995 a 2004, a Assembleia Geral decidiu que, a partir do primeiro ano da Década, um dia de cada ano seria celebrado como o Dia Internacional dos Povos Indígenas, a fim de homenagear e reconhecer as tradições dos povos indígenas e promover a conscientização sobre a importância dos povos originários na sociedade.

Com efeito, a Resolução nº 48/163 decorreu de longos anos de estudos e debates acerca da situação das nações indígenas do mundo, tendo como primeiro marco concreto o ano de 1982, em que foi criado o Grupo de Trabalho da ONU sobre Populações Indígenas, com a intenção de desenvolver ações internacionais sobre os direitos indígenas. A data de 9 de agosto refere-se, precisamente, ao dia da primeira reunião do Grupo de Trabalho, ocorrida em Genebra, na Suíça.

O Grupo de Trabalho da ONU sobre Populações Indígenas e a aludida Década Internacional tinham como objetivo elaborar uma Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas. No ano de 2004, sem que tivesse sido possível finalizar a Declaração, em razão de impasses nas negociações, fez-se necessário estabelecer uma segunda Década, dessa vez, de 2005 a 2014.Em 13.09.2007 foi finalmente concluída a “Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas”. Com 46 artigos, o documento é considerado “um marco na história da ONU, quando os Estados-Membros e os representantes dos povos indígenas conseguiram se reconciliar com seu doloroso passado e se dispuseram a seguir em frente no caminho que leva aos direitos humanos, à justiça e ao desenvolvimento para todos[1]

A Declaração é um documento abrangente que, ao abordar os direitos dos povos indígenas, não intenciona definir novos direitos, mas, antes sim, reconhecer e afirmar direitos fundamentais universais no contexto das culturas, realidades e necessidades indígenas. O documento constitui um relevante instrumento internacional de direitos humanos em relação a povos indígenas, na medida em que contribui para a conscientização sobre a opressão histórica perpetrada contra estes, além de promover a tolerância, a compreensão e as boas relações entre os povos indígenas e os demais segmentos da sociedade.

Como não poderia deixar de ser, a Declaração contempla apontamentos acerca da conexão entre os povos indígenas e o meio ambiente, reconhecendo, em suas considerações iniciais, “que o respeito aos conhecimentos, às culturas e às práticas tradicionais indígenas contribui para o desenvolvimento sustentável e equitativo e para a gestão adequada do meio ambiente”.

Neste contexto, importante destacar o quanto previsto nos arts. 29 e 32 da Declaração[2]:

Artigo 29

      1. Os povos indígenas têm direito à conservação e à proteção do meio ambiente e da capacidade produtiva de suas terras ou territórios e recursos. Os Estados deverão estabelecer e executar programas de assistência aos povos indígenas para assegurar essa conservação e proteção, sem qualquer discriminação.
      2. Os Estados adotarão medidas eficazes para garantir que não se armazenem, nem se eliminem materiais perigosos nas terras ou territórios dos povos indígenas, sem seu consentimento livre, prévio e informado.
      3. Os Estados também adotarão medidas eficazes para garantir, conforme seja necessário, que programas de vigilância, manutenção e restabelecimento da saúde dos povos indígenas afetados por esses materiais, elaborados e executados por esses povos, sejam devidamente aplicados.

(…)

Artigo 32

      1. Os povos indígenas têm o direito de determinar e de elaborar as prioridades e estratégias para o desenvolvimento ou a utilização de suas terras ou territórios e outros recursos.
      2. Os Estados celebrarão consultas e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas próprias instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre e informado antes de aprovar qualquer projeto que afete suas terras ou territórios e outros recursos, particularmente em relação ao desenvolvimento, à utilização ou à exploração de recursos minerais, hídricos ou de outro tipo.
      3. Os Estados estabelecerão mecanismos eficazes para a reparação justa e equitativa dessas atividades, e serão adotadas medidas apropriadas para mitigar suas consequências nocivas nos planos ambiental, econômico, social, cultural ou espiritual.

No plano dos reflexos que referidas disposições têm no Direito Ambiental pátrio, notadamente no âmbito do processo de licenciamento ambiental, a análise dos arts. 29 e 32 permite, de pronto, estabelecer um paralelo entre a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, amplamente adotada como balizadora das ações dos diferentes atores envolvidos em um processo de licenciamento.

Aprovada na Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho ocorrida em 07.06.1989, a Convenção OIT nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais foi reconhecida, no Brasil, por meio do Decreto Legislativo nº 143, de 20.06.2002, do Congresso Nacional, e posteriormente, promulgada pelo Decreto Federal nº 5.051, de 19.04.2004 — o qual, atualmente, encontra-se revogado pelo Decreto Federal nº 10.088, de 05.11.2019, que consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem sobre a promulgação de convenções e recomendações da OIT ratificadas pela República Federativa do Brasil.

De fato, a Convenção prevê importantes mecanismos que visam a garantir que os povos indígenas e tribais sejam devidamente consultados, mediante procedimentos próprios, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente.

Nessa linha, estabelece que cabe aos Estados definir os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, ao menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes.

Especificamente quanto aos direitos dos povos indígenas acerca da exploração dos recursos naturais existentes em suas terras, a Convenção prevê que estes deverão ser particularmente protegidos, e abrangem o direito desses povos a participarem da utilização, administração e conservação dos recursos mencionados.

Por outro lado, como se sabe, e segundo o art. 20, inciso IX e o art. 176 da Constituição da República de 1988, no Brasil, as jazidas, em lavra ou não, e os demais recursos minerais integram o universo patrimonial da União e constituem propriedade distinta em relação ao solo e ao subsolo em que se localizam, garantindo-se aos respectivos concessionários a titularidade do produto da lavra.

Precisamente neste contexto, a Convenção OIT nº 169 prevê que “em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos do subsolo, ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes na terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão participar sempre que for possível dos benefícios que essas atividades produzam, e receber indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades”.

Todo esse conjunto de medidas encontra reflexo, na esfera do licenciamento ambiental, na necessidade de os empreendedores consultarem, de forma livre, prévia e informada, as comunidades indígenas em caso de empreendimentos que possam impactá-las.

Trata-se, indubitavelmente, de processo complexo, sendo certo que o consenso necessário muitas vezes passa por intrincados processos de negociação, nos quais os interesses e direitos das partes devem ser equilibrados, para se atingir a desejável harmonia entre desenvolvimento sustentável e a proteção aos direitos dos povos indígenas.

Todavia, e muito embora se reconheça que existe espaço para avanços, não restam dúvidas de que, no plano nacional, notadamente em sua relação com o Direito Ambiental, existe um arcabouço consolidado de regras aptas a garantir a efetividade dos direitos reconhecidos pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, o que permite compreender o Dia Internacional dos Povos Indígenas como uma data a ser celebrada por sua importância no reconhecimento das tradições destes povos, e na promoção da conscientização sobre sua relevância na sociedade.

 

[1] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA (UNESCO), CENTRO DE INFORMAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O BRASIL (UNIC-RIO) E INSTITUTO SÓCIO AMBIENTAL (ISA) BR/2008/PI/H/32. Declaração das Nações Unidas sobre os Povos Indígenas: perguntas e respostas. 2.ed. – Rio de Janeiro : UNIC;Brasília : UNESCO, 2009. Disponível em https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000185079?posInSet=2&queryId=9ec986d3-ee78-42af-8891-48d8b7c2ccc4  .

[2] Ibidem.

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